
A Forma, Assassina da Essência A obediência à forma, ao rito, é um meio para se manterem as pessoas agregadas, coesas. Enquanto elas se preocupam em seguir à risca o preceito, que impõe determinadas práticas, ou proíbe outras. O temor da infração é o sentimento dominante. Pode-se inclusive sentir prazer nesse temor, mas, esse prazer nada tem que ver com a ligação afetiva com o próximo, e exclui categoricamente toda percepção de transcendência. A sensação de dever cumprido, após o término dos rituais, é gratificante: como em qualquer outra compulsão, a realização do ato ritualístico alivia temporariamente a angústia. Creio que essa vinculação à forma, com a exclusão de afetos como a solidariedade a alteridade (Levinas), ou a “com-paixão”, bem como a inveja , o ódio, o desamparo, tem efeito (e o objetivo) “robotizante”. O bom e o ruim são “postos sob o tapete”. Dir-se-à que forma e essência “andam juntas”, e que é muito mais difícil, sem essa união, enfrentar o embate com os nossos sentimentos, como a dúvida, a ambivalência, e o medo: e eu concordo com essa postura. Mas, pergunto, é isto que se deseja, despersonalizando o “sujeito”, e, tal como com uma droga, anestesiando-o contra as inalienáveis experiências vivenciais? A forma é como um uniforme, através do qual as pessoas se unem e se identificam umas com as outras. Mas não deixa de ser um disfarce com relação às incanceláveis diferenças entre as pessoas. A forma invade a alimentação, a seqüência das preces, o descanso obrigatório, o vestir-se,o lavar-se,o corte de cabelo,e muitos outros hábitos cotidianos, tornando a vida uma maratona recheada de deveres, e retirando todo o espaço para uma autonomia do ser humano. E a religião, leva ela à transcendência, à ligação afetiva, à compreensão, à solidariedade? Tenho fortes dúvidas. A imposição de uma religião, ainda que os “ensinamentos impostos” possam favorecer o convívio social harmônico, caminha sempre no sentido “de fora para dentro” com relação ao ser humano, podendo, no máximo, ajudar a desenvolver características que são do próprio ser humano. Religião vem de “re-ligare”, tendo, como sua etimologia denuncia, o objetivo precípuo de re–aproximar os cotos de um vínculo rôto. Vínculo com quem? Com Deus? Prefiro o termo “religiosidade”, que tem mais que ver com sensibilidade e transcendência, que, também crença, admite mesmo a possibilidade da inexistência de Deus. E para que podem ter servido essas reflexões? Para deixar bem claro que, a meu, ver os cultos e as religiões, pior se ritualísticas, sempre dividiram os homens, muito mais do que os uniram , tendo-se derivado, através dos tempos, muitas vezes, para a subjugação e a dominação do ser humano. MARCO SEGRE Professor Emérito da FMUSP
Comentado por Marco Segre
Quando a eutanásia ou o suicídio assistido são aceitáveis?
Comentado por Marcos de Almeida
When is physician assisted suicide or euthanasia acceptable?(Quando o suicídio assistido pelo médico ou a eutanásia são aceitáveis?)
Autores: S. Frileux; C. Lelièvre; M.T.Muñoz Sastre; E. Mullet; P.C. Sorum
Revista: Journal of Medical Ethics 2003, 29: p. 330-336.
(Comentado por: Marcos de Almeida, Professor do Departamento de Medicina Legal da Unifesp/EPM
Resumo/comentário:
O trabalho teve como propósito descobrir quais fatores afetavam os julgamentos das pessoas leigas quanto à aceitabilidade do suicídio assistido pelo médico (SAM) e/ou a eutanásia (E) e como esses fatores interagem. Os participantes classificaram a aceitabilidade quer para o SAM, quer para a E, a partir de 72 vinhetas de doentes, contendo um padrão dos seguintes fatores; 1)combinação de todas as idades do paciente (3 níveis); 2) curabilidade da doença (2 níveis); grau de sofrimento (2 níveis); estado mental do paciente (2 níveis) e 3) quantidade de solicitações do paciente para o procedimento (3 níveis).
A amostra consistiu de 66 adultos jovens, 62 adultos de meia idade e 66 adultos idosos. O mais novo tinha 18 e o mais velho, 85 anos de idade, dos quais 114 (59%) eram mulheres e 80 (41%) homens. As avaliações foram feitas de acordo com a teoria funcional de cognição de N H Anderson, principais efeitos e interação entre os fatores dos pacientes e as características dos participantes, foram investigados por meio tanto de gráficos como de ANOVA. Como resultado deu para notar que o mais potente determinante de aceitabilidade foi a solicitação do paciente. A E, no geral foi considerada menos aceitável do que o SAM, mas essa diferença desapareceu quando as solicitações eram repetitivas.
Por outro lado, à proporção que sua própria idade aumentava, os participantes colocavam mais peso na idade do paciente, como critério de aceitabilidade. Como conclusão, percebe-se que o julgamento das pessoas está de acordo com a exigência das legislações que existem, e que exigem que as solicitações sejam repetitivas para o ato de terminar a vida. Pessoas mais jovens, que são freqüentemente os tomadores de decisão em relação a seus parentes mais idosos, colocam, no entanto, menor importância na idade do paciente.
Cuidadoso trabalho coordenado pelo Dr. Sorum do Albany Medical Center em Nova York e efetuado por quatro médicos franceses, visando avaliar a maior ou menor aceitabilidade do término da vida, efetuado de duas formas: pelo suicídio assistido por médico e pela eutanásia.
Embora a idéia não seja inédita, pretendeu dar maior amplitude quanto ao julgamento, incluindo faixas etárias desde os 18 anos, já que, na prática, as decisões sobre o término da vida de seus parentes são tomadas por pessoas bastante jovens.
Chama a atenção, igualmente, o fato de que a maioria das respostas inclina-se pela preferência ao suicídio assistido por médico em relação à eutanásia, em qualquer das circunstâncias. Não obstante a tendência clara com relação à preferência, a 95 participantes foi feita a pergunta: “Até quando você acha que a eutanásia seria um procedimento aceitável neste caso?” enquanto aos demais 99 participantes a pergunta foi: “Até quando você acha que o suicídio assistido por médico seria um procedimento aceitável neste caso?”
No trabalho não foi dada uma explicação para a divisão. Ainda assim, este amplia a discussão usando metodologia semelhante àquela já usada por Cuperus-Bosma e colaboradores, na Holanda, em 1999 e publicada na mesma revista (J.Med. Ethics1999, 25:8-15). Cinco dos numerosos critérios exigidos em legislações e protocolos foram muito bem utilizados e resultaram em gráficos extremamente esclarecedores, tais como: estado mental do paciente, incurabilidade da doença, número de solicitações para o procedimento, idade do paciente e sofrimento do paciente.
Todavia, é curioso notar que o critério que teve mais força entre os entrevistados, foi o da freqüência de solicitações para o procedimento, especialmente se observarmos que o critério de incurabilidade combinado com o sofrimento do paciente, foi o prevalente em outras pesquisas. Talvez o fato de que todos os participantes da pesquisa sejam originários de uma única região da França (Tours).
A ética e a amazenagem de tecidos humanos Stored human tissue: an ethical perspective on the fate of anonymous, archival material (Armazenagem de tecidos humanos: lei, ética e medicina no destino de material anônimo arquivado)
Comentado por Márcio Fabri
Autores: D.G.Jones; R.Gear; K.A.Galvin
Revista: Journal of Medical Ethics 2003, 29: p. 343-347
Abstract:
The furore over the retention of organs at postmortem examination, without adequate consent, has led to a reassessment of the justification for, and circumstances surrounding, the retention of any human material after postmortem examinations and operations. This brings into focus the large amount of human material stored in various archives and museums, much of which is not identifiable and was accumulated many years ago, under unknown circumstances. Such anonymous archival material could be disposed of, used for teaching, used for research, or remain in storage. We argue that there are no ethical grounds for disposing of the material, or for storing it in the absence of a teaching or research rationale. Nevertheless, with stringent safeguards, it can be used even in the absence of consent in research and teaching. Regulations are required to control the storage of all such human material, along the lines of regulations governing anatomy body bequests.
(Comentado por: Prof. Márcio Fabri dos Anjos, Diretor do Instituto de Ética Teológica do Centro Universitário Nossa Senhora Assunção
Resumo/comentário:
Este estudo mostra a rápida evolução ocorrida nestas últimas décadas no que se refere às questões legais, éticas e médicas na armazenagem e uso de tecidos humanos, centrando-se sobre o destino de material anônimo arquivado. Fazemos aqui uma seleção de tópicos que nos parecem interessantes no texto, deixando detalhes para uma busca pessoal de quem o quiser, no próprio artigo.
O interesse em pesquisas médicas e no ensino acadêmico polarizou por muito tempo a atenção nesta área, deixando, em certo sentido, um vazio ético na obtenção de tecidos e órgãos de cadáveres. Mas nos anos 90 vieram à tona inquéritos envolvendo retenção de tecidos e órgãos em exames post mortem; apareceram também escândalos nos Estados Unidos, envolvendo departamentos de anatomia, bancos de tecidos, empresas de biotecnologias e crematórios. Estes novos fatos recolocam as questões éticas no assunto.
De modo geral, entre os princípios éticos mais invocados nesta área aparecem: o respeito pela pessoa falecida e por seus familiares; o papel do consentimento livre e esclarecido; as diversidades culturais na consideração do cadáver; o aspecto da gratuidade, especialmente através de doação de órgãos e tecidos. O tratamento dado a cadáveres e tecidos afeta particularmente as pessoas vivas, porque evoca as relações simbólicas com as pessoas falecidas, e este parece também um aspecto relevante. Nestes princípios a obtenção de cadáveres, tecidos, órgãos e partes do corpo, encontra já bons critérios para ser conduzida eticamente.
Além das questões éticas da obtenção surge hoje outra interrogação que não pode passar despercebida: a ética sobre o uso de material humano arquivado ao longo de tantos anos, especialmente a partir do final do século 19. De fato, existe hoje um enorme acervo de tal material, além de verdadeiras coleções que foram se constituindo, que têm sido bases para instituições educacionais e de pesquisa. A natureza do material de arquivo remete basicamente a materiais retidos para servirem de futuras referências. A necessidade de estabelecer causas de morte, diagnósticos a serem completados e o acompanhamento da evolução de patologias, são exemplos deste caso. A variedade do arquivo é grande: lâminas histológicas, sangue, órgãos, embriões, fetos e cadáveres de pessoas adultas, entre tantos outros.
A questão do material arquivado se torna quantitativamente maior se forem considerados os arquivos de museus.
Referem os autores que só na Inglaterra, em 1999, uma estimativa apontava para 104.300 órgãos, partes do corpo e fetos ou natimortos, retidos em instituições de exames patológicos post mortem. A estes se somam ainda 480.600 amostras de tecidos armazenadas em museus ou outros tipos de arquivos.
A história dos caminhos éticos e legais para a obtenção destes materiais é, na maioria dos casos, obscura. Um conceito ético chave no caso do material de arquivo é a manutenção de seu anonimato: ou seja, que o material não seja identificado por referência a indivíduos conhecidos. Mas este critério é apenas um critério inicial.
Há problemas éticos na armazenagem destes materiais de arquivo?
Algumas posições dignas de nota:
- Na retenção, uso ou disposição destes materiais sejam consideradas as percepções dos familiares e os valores históricos e educacionais dos tecidos humanos.
- Pesquisa com materiais anônimos e não identificáveis já existentes não deveria ser classificada como pesquisa com seres humanos (National Bioethics Advisory Commission, dos Estados Unidos). Nessa linha, argumenta-se que não se devem sacralizar as amostras, mas distingui-las das pessoas – que merecem proteção de sua autonomia e privacidade. A garantia viria com o anonimato das amostras.
- A pesquisa com material de arquivo é ética mesmo na falta de consentimento dos sujeitos, desde que, entre outras, seja garantido o mais cedo possível o anonimato das pessoas às quais o material se refere, protegendo-as assim de qualquer inconveniente; e que seja obtido o consentimento em casos de dúvida sobre o caráter invasivo da pesquisa (Royal College of Physicians - Reino Unido). Tais provisões não se aplicam ao material totalmente anônimo de arquivos.
O que fazer com os materiais anônimos de arquivo?
Quando se trata de material realmente anônimo de arquivo (não há familiares a serem consultados) e o material está nas mãos de quem legalmente os possui. O que seria melhor fazer segundo o interesse da comunidade humana e respeitando as pessoas de quem os materiais provêm? Há inicialmente quatro opções:
1. Incinerar o material para evitar maus usos e abusos. Esta opção obviamente não considera os bons usos que eventualmente se podem fazer em educação e pesquisa.
2. Acentuar o uso educativo para a manutenção dos tecidos. Entretanto, permanece a questão sobre materiais que não sirvam ou que só remotamente possam servir para estes fins.
3. Considerar seu uso em pesquisas. A justificativa depende do grau de utilidade para a pesquisa, o que varia. De qualquer forma, estão aqui incluídos os casos de retenção de material para inquéritos legais posteriores.
4. Manter o armazenamento com os devidos cuidados e respeito, mesmo que de imediato sejam pequenos seus benefícios, mas considerando possibilidades de futuras evoluções das ciências.
Nenhuma das opções acima aceita que os tecidos humanos possam ser guardados indefinidamente, ou que possam ser utilizados para fins contrários à ética: a questão é o que pode e o que não pode ser feito com tais tecidos.
Consentimento x Propriedade
É praticamente um consenso: a ética no uso de tecidos humanos é presidida pela autonomia dos sujeitos e passa pelo adequado consentimento. Mas na essência do debate sobre a ética do uso de materiais de arquivo está exatamente a ausência do consentimento de um sujeito presente. Na discussão sobre consentimento foi apontada recentemente uma possível ambigüidade: a mistura entre o modelo de consentimento com o modelo de propriedade. Isto se verificaria no caso de parentes, com respeito a um falecido.
Os parentes têm o direito de concordar ou discordar com a invasão do corpo do falecido. Isso, entretanto, difere do consentimento do sujeito e se aproxima do modelo de propriedade. As aplicações desta distinção levariam a dizer que a autonomia exercida pelo consentimento, quando verificado, transferiria dos sujeitos para as instituições (de pesquisa, ensino ou terapia) os direitos de propriedade dos tecidos. As instituições naturalmente se submeteriam ao uso ético de tais direitos. Nenhum interesse de propriedade se sobrepõe eticamente ao consentimento, mas que no caso dos arquivos, está ausente. Assim, valeria o direito de propriedade a ser exercido de modo ético.
Bem próxima de tal posição persiste um problema ético encontrado na obtenção de novos materiais de arquivo, sem o consentimento dos sujeitos; ou um uso ulterior não previsto em um consentimento obtido. Tal ambigüidade ética se torna ainda maior quando se dirige para fins comerciais.
Os autores concluem que "amostras de arquivo deveriam ser tratadas com o mesmo cuidado e respeito como se tivessem sido doadas [...]. Isto é possível se as pessoas encarregadas do material agem mais como curadores do que como proprietários, com a responsabilidade pela armazenagem das amostras, por seu uso apropriado, e pela qualidade da pesquisa desenvolvida sobre eles."
Algumas propostas conclusivas dos autores apontam na seguinte direção: que todas as coleções, mesmo as de museus, sejam gradativamente registradas, autorizadas e de alguma forma monitoradas pela sociedade; que se regule de modo uniforme eliminando distinções entre coleções de patologia e de anatomia, e formando a relação de um arquivo conjunto; forme-se pessoal especializado para a curadoria das coleções; comissões de ética devidamente autorizadas supervisionem o uso ético das coleções.