
O SER-HUMANO NA PERSPECTIVA EXISTENCIAL
(13/08/2010)
I- INTRODUÇÃO
1. Perspectiva existencial X Perspectiva essencial
# Abordagem hermenêutica: Mesma realidade sob diferentes ângulos
# Perspectiva essencial/natural = enquanto espécie = universal= que é ser-humano
# Perspectiva existencial = o existente enquanto singular, único = liberdade
2. Características do ser-humano como existência
# Existir = Liberdade = Poder-ser = Preocupar-se com ser = Possibilidades fácticas
# Possibilidade radical: Ser/não-ser, ganhar/ perder a vida, realizar-se/frustrar-se
# Em função da felicidade plena: paixão/desejo de infinito no finito [Pressuposto]
3. Existência como caminho para a realização (cf. S. Kierkegaard)
# Três estádios da existência: estético, ético, religioso
# Não etapas automáticas, mas esferas da existência, maneiras básicas de situar-se na vida
II- Estádios da existência
1. Estádio estético
a) Elemento fundamental
# Prazer como meta da vida = satisfação das inclinações espontâneas = sensações (aisthesis)
# Regime da natureza = busca de todo tipo de satisfação (não só sensível) sem outro critério senão a satisfação
b) Características específicas deste estilo de vida
(1) Variedade/Diversidade dos possíveis objetos de prazer
(2) Imediatismo: Viver apenas para o instante de gozo, fugindo do que faz sofrer, cansa aborrece = Colher a plenitude do instante que é essencialmente passageiro
(3) Instabilidade dispersiva: Não se fixa em nada = Incapaz de saciar-se = Novidade sempre igual = Experimentação contínua = Torna-se refém de tais prazeres, enquanto faz depender deles a própria felicidade = Busca na vida finita os clarões fugidios do infinito
(4) Exterioridade = Estímulos de fora = Não tem interioridade própria = Superficialidade
(5) Regime de necessidade = Não há escolha verdadeira = Arrastado pelos desejos = Não assume compromissos = Liberdade aparente = Amoralismo: anterior ao ético (bem e mal)
c) Síntese
# Individualismo = Afirmação absoluta do eu = Auto-satisfação = Relação possessiva (coisas/pessoas) = Valor último, não bens procurados, mas o próprio indivíduo, sua satisfação.
# Símbolo = Don Juan = Sedutor = Prazer de novas conquistas (dominar a vítima)
# Atualidade: P.ex.: Gilles Lipovetski: A era do vazio, etc.
d) Conseqüências: Para onde leva a dinâmica da vida estética
# Tédio da repetição: O desejo jamais satisfeito torna-se assim insaciável, mas a repetição acaba cansando. Por outro lado, a fuga do tédio leva a nova busca de distrações, divertimento, numa crescente frustração
# Angústia = Satisfações não saciam a infinidade do desejo = Consciência infeliz (Hegel)
# Desespero = Estádio final e inevitável da vida estética = A situação torna-se insuportável = O espírito cansado do imediatismo começa a exigir uma forma superior de existência
e) Movimento de Conversão ainda no seio da vida estética [Kierkegaard = Ironia]
# Tendência a ultrapassar o instante, o imediato, pela reflexão
# Consciência do fracasso da vida estética, da inadequação entre o infinito do desejo e suas expressões finitas = Inconsistência da liberdade absoluta, enquanto escravidão ao desejo
# Atitudes diante da tomada de consciência do desespero
(1) Ou Melancolia: Saciado de prazeres, desencantado, tenta sufocar a inquietação, buscando novos prazeres, distrações, que já não satisfazem (desgosto da vida) Cf. Hoje: Depressão
(2) Ou Assumir o desespero e passar ao nível ético
# Conclusão: Etapa de transição
+ Não mais é puro estádio estético, porque é reflexão
+ Ainda não é estádio ético porque não se decide, insiste na contradição
2. Estádio ético
a) Elemento decisivo
# O ingresso no estádio ético: Não é passagem automática, Mas salto dialético (opção)
# Diferença entre Estádio estético = Necessidade: Ser simplesmente o que é, sem escolha
Estádio ético = Liberdade = Tornar-se o que deve tornar-se, pela escolha
# Essencial do estádio ético = Escolher escolher = Escolher a si mesmo = Escolher o bem
# Opção: Não por seu eu imediato / Mas por seu si mesmo essencial de valor eterno
# Assumir a responsabilidade = escolher os riscos da existência (alternativa)
# Transformação: do imediatismo à ipseidade, da necessidade à liberdade, da multiplicidade dispersiva à personalidade centrada, do instante à duração, da possibilidade à tarefa
b) Características específicas
(1) Universalidade da razão (propriamente humano) X Particularidade da sensação
# Descoberta dos valores universais, ideais (sentido da vida): Ser bom torna-se o valor supremo (justiça, honestidade, respeito pelo outro, autocontrole, lealdade, solidariedade, etc.)
# O ser humano se compreende a partir do que constitui a sua originalidade, enquanto racional e livre, aberto à universalidade absoluta da verdade e do bem
# Libertação do apego: Revelação de um mundo novo de beleza ideal, que enche de alegria
(2) Dever = Regra/Norma de comportamento X Arbitrariedade dos desejos
# Não moral abstrata: Escravo do dever como algo exterior = Cumprir obrigações impostas
# Dever verdadeiro: Fidelidade a si mesmo (eu profundo = razão universal) = Coincidência concreta entre individual e universal = Valores como expressão da personalidade autêntica
# Aspecto social/objetivo = Conciliar sua interioridade com a vida moral da sociedade
(3) Continuidade X Dispersão: Unidade da personalidade, centrada em sua interioridade
# Ético = adesão ao bem = duração no tempo = repetição livre = perseverança
# Seriedade da existência: Onde esteta vê possibilidades de gozar, ético vê tarefas a cumprir
# Símbolo: Casamento = Norma social da vida pessoal = Esposo X Sedutor
c) Interação entre o estético e o ético
# Positiva: Não exclusão do prazer, mas interiorização, enquanto integrado livremente na vida ética: P.ex.: erotismo no casamento; talentos na profissão
# Negativa ( Dissociação): Quem já descobriu a liberdade pode agir livremente contra os valores éticos (incoerência) ou recair no estádio estético (escolher não escolher)
d) Diferença secundária com a posição de Kierkegaard
# Kierkegaard: Parece atribuir a passagem ao estádio ético apenas ao desespero
# Aqui: Insatisfação com prazeres fugazes e consciência da própria responsabilidade pode surgir com a idade da razão, ocasionada pela educação (moral, religiosa) ou experiências fortes
e) Síntese: Características da vida ética
# Auto-centramento: Motivo da ação é a própria perfeição no bem = Realização como ser racional e livre = Busca do bem em si como seu bem = Quer o bem do outro, não por causa do outro (ágape), mas porque isso é bom (eticamente).
# Auto-suficiência: Trata-se de realizar a sua liberdade no bem (boa vontade) = Conquistar o bem por si mesmo, pelo próprio esforço, pelas próprias forças
# Fundamento = Relação consigo mesmo (monológica) e com o dever (valores impessoais), não especificamente com o outro (dialogal)
# Pressuposto: O ser humano, enquanto livre, é capaz de fazer o bem = É responsável pela realização do ideal (valores, deveres) = Não existe o impossível
f) Resultado da vida ética séria
# Experiência de repetidas quedas, fracasso no cumprimento dos propósitos = Não é capaz de cumprir plenamente a lei, apesar de seus esforços
# Sentimento de culpa = Responsabilidade própria = Fraqueza, incoerência, indignidade
# Conclusão forçosa: Impossível realizar o ideal = Inutilidade dos esforços = Erro/culpa como indissociáveis da existência = Limite da condição humana = Situação sem saída!
g) Crise e Transição: Consciência do paradoxo (limite do ético), sem decisão de superá-lo
# Arrependimento (moral) = Descontentamento consigo mesmo = Sentimento de mal-estar, humilhação, vergonha = Reconhecer-se culpado e querer libertar-se da culpa, fazendo o bem
# Mas o Arrependimento não salva, não liberta = Não pode superar a culpa por si mesmo, mas fecha ainda mais a pessoa em si mesma, nos seus limites = Daí: Tristeza, desânimo
# Atitudes diante da crise (culpa assumida ou recalcada)
+ Abandono da vida ética, voltando ao estádio estético
+ Aceitação resignada de existência ética medíocre, (divisão interior)
+ Humor [Kierkegaard] = Rir de si mesmo na consciência de sua insuficiência
+ Saída: Aceitação do perdão pela fé
3. Estádio Religioso
a) Elemento fundamental
# Sair do impasse existencial absoluto = Viver a relação absoluta com o Absoluto como:
(1) Humildade = Assumir sua insuficiência radical (finitude) no arrependimento teologal:
+ Não como mera culpa moral, falta em relação a si mesmo (seu dever, valores universais)
+ Mas como pecado, na relação singular com o Outro, enquanto recusa de seu amor
(2) Fé = Decisão de acredita no amor do Absoluto, de confiar-se a ele, compreendendo a existência como seu dom e a realização como aceitação de seu perdão.
# Negativamente: Relativização de si mesmo, que implica duas atitudes/decisões básicas:
(1) Renúncia ao auto-centramento como fim: Morrer a si mesmo, enquanto busca da própria realização e felicidade, para que surja o eu verdadeiro, extático e relacional (dialogal)
(2) Renúncia à auto-suficiência como meio: Reconhecer e aceitar que a superação da culpa e sua realização no bem depende do Outro, não é conquista própria, mas dom gratuito
# Positivamente: Reordenação de toda a existência, assumindo como
(1) Fim/Sentido/ Realização = O amor de doação, sair de si mesmo (descentrar-se), para dar-se ao outro, querendo o bem dele, enquanto dele, não enquanto realização própria
(2) Meio imprescindível = Fé = Acreditar no amor do Absoluto, como condição, tanto para sair do impasse da culpa (negativo), como para amar com amor de doação (positivo)
b) Dinâmica da fé no amor do Absoluto
# Diferentes relações para com o outro nos estádios estético, ético, religioso
# A fé como resposta à oferta do amor, significa aceitar ser salvo/realizado pelo outro = Depender inteiramente dele quanto à própria realização
# Esta entrega ao Outro é um gesto
+ Não de fraqueza, nem de abdicação da própria responsabilidade
+ Mas de perfeita lucidez (reconhece a limitação da condição humana) e de liberdade mais exigente do que todos os esforços que alguém possa fazer em vista da própria realização.
# A Fé no amor do outro, a experiência de ser afirmado pelo outro no seu ser, liberta do anseio da própria realização: Des-pre-ocupando-se de si mesmo, a pessoa é capaz de ocupar-se do outro e dos outros, querer o bem deles, por eles mesmos, e não por interesse próprio ou por um ideal abstrato de justiça ou solidariedade.
# Portanto, ao deixar de buscar a felicidade na própria realização, para interessar-se pela dos outros, a pessoa a encontra no amor, grato e gratuito: Sente-se feliz em fazer os outros felizes.
c) Como o Outro se introduz pela fé no horizonte da existência humana?
(1) Na linha da crise da vida ética:
# Como Postulado na Alternativa/Opção básica diante do impasse ético: Fé ou Não-Fé = Fé ou Absurdo).
# Trata-se da única saída razoável: Diante da impossibilidade de viver a verdade de minha existência, praticar o bem, realizar-me por mim mesmo, é coerente optar por Deus, para quem tudo é possível, apelar para Ele.
# Trata-se de acreditar (fé) em dois sentidos, porque não são comprováveis empiricamente (no mundo)
+ Nem a existência do Absoluto,
+ Nem sua atitude de amor e benevolência
(2) Basicamente: Como experiência da existência como dom
# A fé no Outro [Contra Kierkegaard]
+ Não é apenas uma aposta para evitar o absurdo da existência. Não é pura dúvida
+ Tem sua lucidez própria = é também evidência intuitiva, experiencial, pessoal, embora não possa ser comprovada objetivamente (no mundo e pela razão discursiva]
+ Há uma experiência humana radical que leva a reconhecer a existência como dom
# Como se viu, a autêntica auto-estima, que liberta verdadeiramente de si mesmo, da própria culpa, para o dom ao outro no amor, pressupõe a experiência de um amor absolutamente capaz de realizar o ser humano, i.e. que pode e quer dar-lhe a plenitude da vida. Esta experiência corresponde à percepção da vida como um dom gratuito e sem reservas. Ela surge:
+ Por um lado, da consciência de que viver é algo por si mesmo positivo e belo, que encerra ainda uma promessa de desenvolvimento ilimitado.
+ Por outro lado, implica a convicção da própria insuficiência e incapacidade de dar a si mesmo a vida.
+ Daí a sensação do mistério que envolve a própria existência, como fonte benévola de ser.
# Entretanto, para superar a auto-suficiência humana e levar a pessoa à atitude de fé em um Absoluto em cujas mãos entrega seu destino, não basta a visão positiva da existência como um dom misterioso. Requer-se ainda:
+ A consciência não só da finitude humana em geral, mas do próprio pecado, como incapacidade de fazer o bem [Questão aberta?]
+ Vislumbrar no fundo do mistério o rosto amigo do Outro absoluto, capaz de amar e ser amado.
# Esta descoberta de um absoluto de caráter pessoal e benevolente está na linha da experiência humana mais autêntica, ainda que poucos cheguem a fazê-la originariamente num grau suficiente de pureza e completude.
+ De fato, é nessa abertura estrutural do espírito humano para um Tu absoluto e transcendente que se funda a experiência religiosa da humanidade.
d) Mediações da experiência do Outro
(1) Mediação religiosa e cristã: A proposta do Absoluto de amor e perdão é feita expressamente por várias religiões e esta proposta detalhada pode conduzir mais facilmente à experiência pessoal dele
# Mas é apenas no contexto bíblico-cristão que se revela plenamente na pessoa de Jesus Cristo o rosto de Deus como Pai fiel e misericordioso, que convida todas as suas criaturas a participar eternamente de sua alegria numa perfeita comunhão de amor.
# Acolhendo este testemunho, que encontra uma confirmação decisiva na sua ressonância com as fibras mais profundas do próprio coração, todo ser humano é capaz, em princípio, de confiar-se inteiramente a este Tu divino e assim, livre da preocupação consigo mesmo, realizar-se verdadeiramente no amor gratuito a Deus e ao próximo.
(2) Mediação do amor humano para a redenção da pessoa e para o amor do Absoluto
# A relação explícita com o amor do outro normalmente acontece em primeiro lugar no plano humano. A maioria das pessoas faz ao longo da vida a experiência de algum amor singular e relativamente desinteressado (pais, irmãos, esposos, amigos, benfeitores).
# A fé neste amor é capaz de libertar a pessoa, tanto do estádio estético (despertando a sua responsabilidade, etc.), como, até certo ponto, do estádio ético, descentrando-a para amar de verdade e viver para o amado, como sentido de sua vida.
# Mas o amor humano é essencialmente contingente, enquanto mais ou menos passageiro, incoerente, interessado.
+ Tendo em vista a limitação da liberdade humana, mesmo a aliança fundada no compromisso mais puro, total e definitivo, pode ser revogada.
+ Portanto, a fé no amor humano não pode ser absoluta, embora possa manter-se firme ao longo do tempo, enquanto é continuamente renovada pela esperança, fundada na experiência da fidelidade do outro.
+ Neste sentido, a consciência do próprio valor, a libertação da própria insegurança e a capacidade de voltar-se para outros no amor, provocadas pela experiência do amor humano, ainda que efetivas, guardam sempre algo de precariedade.
e)Integração do ético no religioso
# A exigência ética, enquanto adesão aos valores universais da razão, não é eliminada pela fé
+ A ética é superada na sua auto-suficiência, enquanto motivada pelo auto-centramento e desejo de auto-realização,
+ Mas é reafirmada no âmbito da fé, enquanto fundada na confiança e motivada pelo amor de Deus.
# A decisão ética no estádio religioso não se exprime simplesmente como boa vontade, mas como vontade de Deus, que não é descoberta simplesmente à luz dos princípios universais da razão prática, mas em virtude da conaturalidade com o bem resultante do amor
+ Embora a pessoa não possa comunicar perfeitamente os motivos de sua decisão, enquanto não se baseia apenas em critérios objetivos e universais, ela pode ter suficiente evidência da vontade de Deus
# A vida de fé como adesão ao Absoluto de Deus não significa desprezar as realidades mundanas, como vaidade e obstáculo, mas antes escolhê-las e vivê-las como expressões do amor
# É verdade que a entrega livre ao outro divino pela fé está sempre sujeita aos percalços da condição humana.
+ O risco da fé resulta da limitação humana, enquanto sua evidência depende da atitude existencial do ser humano na sua abertura à verdade
+ É uma decisão que precisa ser continuamente renovada num processo de consolidação jamais terminado ao longo da vida.
+ Nem por isso se exclui, muito pelo contrário, uma realização efetiva do amor, ainda que imperfeita, já neste mundo com a promessa de sua consumação na vida pós-mortal.
f) Comparação da posição exposta com a de Kierkegaard
(1) Coincidências fundamentais
# Superação do estádio ético pelo estádio religioso
# Esta superação implica a consciência da culpa, enquanto impossibilidade de cumprir a lei
# O fundamento do estádio religioso é a fé em Deus que implica renúncia à auto-suficiência e ao auto-centramento próprios do estádio ético
(2) Diferenças essenciais
# Relação entre fé e razão
+ Para Kierkegaard a decisão de crer não tem qualquer apoio na razão ou na experiência humana: não há critério objetivo para decidir se alguém (Abraão) é louco ou crente [Talvez aceite a fé como postulado mais razoável diante do impasse ético]
+ Nossa proposta admite uma evidência racional da fé, não, porém, de caráter objetivo, mas pessoal e, portanto, precária, dada a instabilidade do ser humano
# Relação entre estádio ético e estádio religioso
+ Para Kierkegaard, baseado na história de Abraão, o estádio religioso implica a possibilidade da suspensão do ético: Dever absoluto para com Deus prevalece sobre as prescrições da moral = Ruptura com a ordem do mundo = O assassínio torna-se sacrifício em obediência à vontade de Deus
+ Nossa proposta admite uma superação do ético no âmbito da fé, mas não a possibilidade de contradição entre a vontade de Deus e os valores éticos da razão (cf. supra): A exegese kierkegaardiana do sacrifício de Isaac não parece justa [matar o filho não é a vontade de Deus para Abraão] e é até, de certo modo, contraditória. Ele admite que Abraão acreditava – contra as aparências, é verdade – que a promessa seria mantida (não perderia Isaac). Portanto, Abraão não duvida, nem perde a esperança, i.e. tem uma evidência [racional ou irracional?] e, embora sofra com a prova, não se angustia.
# Diferença na compreensão da vida cristã e da vida humana
+ Para Kierkegaard, o cristão vive na incerteza, no temor e tremor, na angústia, certa dela mesma e da relação com Deus, na consciência do pecado e na fé no perdão (paradoxo). Ao contrário de Lutero, que admite o paradoxo da fé como saída da angústia do pecado, para Kierkegaard permanece sempre a angústia da escolha radical: certa ou errada?
+ A nossa proposta entende a adesão a Deus pela fé como fonte de paz e alegria, de acordo com os testemunhos do NT e a experiência cristã: Kierkegaard apela unilateralmente para casos extremos (Abraão, Jó) e desconhece o conjunto do NT e especificamente casos de conversão a fé [p.ex. A pecadora: porque muito amou, muito lhe foi perdoado; tua fé te salvou, vá em paz!]
# Omissão da conexão entre fé e amor:
+ Fixando só o aspecto da fé, Kierkegaard não completa a apresentação do estádio religioso (tanto na perspectiva filosófica, como na cristã) e, portanto, o sentido da existência.
+ A fé é a condição para a passagem ao estádio religioso, à vida cristã, enquanto liberta para o amor. Ela conduz à relação fundamental entre o amor permanente de Deus e a resposta de amor do fiel. Esta é a última palavra, que falta em Kierkegaard.
g) O amor como sentido último da existência
# O sentido último da existência não é dado na esfera ética, mas pela sua superação pela vida no amor a partir da fé no amor do Outro
+ Por um lado, a vontade de fazer o bem permanece relativamente estéril, enquanto não é investida pelo dinamismo da afetividade. Ora, o mero valor universal é incapaz de desencadear plenamente as energias afetivas. Ela só é mobilizada propriamente pelo singular concreto. Este bem pode ser desejado possessivamente em vista da satisfação pessoal (estádio estético) ou, através da mediação do bem universal, pode voltar a mobilizar a vontade no amor gratuito afetivo e efetivo (estádio religioso)
+ A vida no amor supera, portanto, o âmbito da ética, entendida como busca da própria realização (auto-centramento), como adesão aos valores universais, enquanto conquista da pessoa no exercício de sua liberdade e expressão de sua boa vontade (auto-suficiência).
+ Trata-se, ao invés, de acolhendo na fé o amor do Outro, aceitar ser salvo/realizado por ele e, assim, livre da preocupação consigo mesmo, amar o Outro e os outros, motivado pelo bem deles mesmos na sua singularidade.
# Portanto, o outro tem um papel central na existência humana, enquanto ela se realiza no amor. Entretanto, o rosto humano do outro na sua precariedade
+ Pode ser ocasião para o despertar explícito da consciência moral, ou seja, para a explicitação da experiência implícita do absoluto do bem, que é constitutiva do ser humano
+ Mas não constitui o fundamento da vida ética, ou seja, não é o apelo imperioso de sua fragilidade que, ao romper os limites imanentes da consciência, abre-a para a responsabilidade absoluta para com ele.
# No cimo da existência humana está o rosto amigo de Deus, enquanto Aquele que liberta para o amor, na medida em que se acredita no seu amor primeiro.